Na Bahia, mais da metade das armas cadastradas em nome de caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (CACs) pertencem à categoria de uso restrito. Esses armamentos, de maior poder de fogo, têm acesso controlado e fiscalizado pela Polícia Federal (PF), mas atualmente estão autorizados para 23.267 pessoas no estado, entre elas algumas autoridades. Em contrapartida, o volume de armas de uso permitido entre os CACs é menor: 17.239 unidades em todo o território baiano, segundo dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da PF.
No conjunto de armamentos de uso restrito em circulação na Bahia, destacam-se 19.476 pistolas, 1.709 carabinas, 1.425 revólveres e 633 espingardas registrados por CACs. O estado ainda possui exemplares de armas de maior poder destrutivo, como 15 metralhadoras, uma submetralhadora e um canhão, todos vinculados exclusivamente a colecionadores, conforme informações da Polícia Federal.
Roberto Uchôa, especialista em controle de armas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avalia que o aumento da presença de armamentos restritos no estado resulta da política de flexibilização adotada durante a gestão anterior do governo federal.
“No governo anterior, houve uma mudança na classificação do que seriam armas de calibre restrito. Por exemplo, a pistola 9 mm, a pistola calibre .40, a pistola calibre .45, o revólver 357 e o fuzil calibre 5,56 mm eram consideradas armas de acesso restrito, sendo que o fuzil sequer era vendido para a população. Era proibido ter acesso. No governo Bolsonaro, essas armas passaram a ser de calibre permitido”, ressalta.
Atualmente, a Polícia Federal não disponibiliza o ano de aquisição das armas. O órgão assumiu neste ano a responsabilidade pelo controle do acesso a armamentos, mas ainda utiliza a base de dados que antes era administrada pelo Exército Brasileiro. Apesar disso, outro levantamento, que reúne o total de certificados de registro emitidos para CACs ao longo do tempo, revela que a Bahia multiplicou por mais de 14 vezes o número de emissões entre 2018 e 2022, passando de 828 para 11.786 documentos nesse intervalo.
Com o início do governo Lula, o número de novos certificados despencou, passando de mais de 11 mil em 2022 para apenas 82 em 2023. A forte redução está relacionada às alterações recentes na legislação sobre armas. “O governo Lula desfez a mudança do governo Bolsonaro, transformando aquelas armas novamente em calibre restrito. Apesar disso, não houve retirada dessas armas de circulação e é por isso que há uma grande quantidade de armas de fogo de calibre restrito”, ressalta Roberto Uchôa.
O instrutor de armamento e tiro (IAT) Flávio Calhau recorda que o Estatuto do Desarmamento determina que armas de calibre restrito só podem ser compradas e registradas por grupos específicos. “[É o caso] das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), polícias e forças auxiliares, agentes de segurança pública e penitenciária, quando em serviço ou conforme autorizações específicas, e atiradores de nível 3”, destaca.
Muitos indivíduos que obtiveram armas de uso restrito durante o governo Bolsonaro conseguiram fazê-lo porque esses armamentos eram classificados como de uso permitido. Dessa forma, essas pessoas não atendem aos requisitos atuais para possuir armas CAC de uso restrito, segundo as normas vigentes no governo Lula, mas até o momento não tiveram suas armas recolhidas, nem há previsão para isso. Para Roberto Uchôa, essa situação representa um ponto negativo da política criminal do governo federal.
“Quando o governo tenta transformar uma arma em calibre restrito é porque ele não quer essa arma em circulação. Se ela estiver em circulação, ele vai entender como um sinal de que ela veio do tráfico internacional de armas. Quando Bolsonaro tornou 9 mm acessível à população, essa arma que vendia 100 a 300 exemplares por ano passou a ser rapidamente a arma mais vendida do Brasil. Um levantamento mostrou que foram vendidas no Brasil, como um todo, 600 mil pistolas 9 mm apenas no último governo”, observa.
Uchôa observa com preocupação a situação atual das armas em circulação no estado e não identifica, no horizonte, uma solução que não envolva o recolhimento desses armamentos. “Posso concluir que as mudanças feitas durante o governo Bolsonaro possibilitaram que criminosos acessassem mais facilmente essas armas e que a permanência dessas armas, mesmo no governo Lula, ainda vai possibilitar o desvio das mãos de pessoas que adquiriram legalmente para criminosos”, conclui.